Monday, April 12, 2010

Fronteiras

Costuma-se dizer que não devemos julgar um livro pela sua capa. Toda a verdade, entretanto, acho perfeitamente viável julgá-lo por sua primeira frase. Claro que cometeria injustiças, mas as primeiras palavras de um grande livro simplesmente têm de ser grandes (isto, em minha opinião, não vale para o final, ao contrário do que muitos colocam. Grandes livros podem ter finais apenas razoáveis). Alguns exemplos, simplesmente arrebatadores, são aqueles que quase encerram a obra, como se as 400 ou 500 páginas seguintes fossem apenas uma alegoria, um desenvolvimento praticamente ilustrativo do que foi a muito fechado. Lá atrás. Veja o caso de “O mito de Sísifo” de Camus “Só existe um problema verdadeiramente filosófico: o Suicídio”: É quase impossível abandonar um livro após um princípio como este, mesmo que quase tudo já tenha sido dito. Ou então “A metamorfose” de Kafka “Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto”. Mas de todos meus inícios de livro, posso dizer que meu predileto é de Tolstoi em “Ana Karenina”: “Todos os gêneros de felicidade se assemelham, mas cada infortúnio tem o seu caráter particular”. Há muito pouco a se dizer depois disso! Mas Tolstoi diz: mais 700 páginas maravilhosas sobre humanismo, existencialismo, filosofia e, claro, infortúnios!

Comecei a falar sobre isso por dois motivos: Primeiro porque, embora a surrada metáfora entre livros e viagens seja, quase sempre, correta, neste caso pode ser considerada oposta. O Pior momento da viagem é o início! Principalmente quando se trata de viagens internacionais. Você planeja tudo com afinco, guarda dinheiro, faz sua mala em estado de excitação, senta em uma poltrona de avião durante 10 ou 12 horas, chega a seu destino e qual seu comitê de recepção?! A Alfândega! Aduana! Customs! Aqueles funcionários cujo formulário de ingresso na carreira constava uma cláusula de antipatia! O pináculo da burocracia!

Se você tiver sorte, muita sorte, esperará alguns minutos em uma fila, sempre atrás da linha amarela, na sua vez, apresentará o passaporte a um sujeito que olhará para você e para sua foto, com uma cara de que gostaria muito de botá-lo em cana, seja lá por que motivo. Vai, em seguida, despejar toda sua frustração no ato de carimbar seu passaporte TUM! Claro que não irá responder seu educado “Thank you”. Então você irá para a esteira de bagagens e como ainda esta com uma sorte dos diabos, esperará apenas 30 minutos (de apreensão), até ver sua mochila toda torta e empoeirada aparecer lá em baixo, então você olha para os outros infelizes que ainda estão esperando, com um certo ar sádico, recolhe a bagagem a apalpando para tentar sentir se aquele vidro de perfume não estourou contaminando todas suas roupas. Passa pelo controle de bagagens, pela fila do “Nada a declarar” e pronto! Finalmente você pode começar a curtir sua viagem, tudo tende a melhorar a partir de agora. As próximas páginas são promissoras!

Mas se você não tiver com tanta sorte assim?! A quantidade de merda que pode acontecer em uma fronteira é quase infinita, podendo ir desde uma pequena contusão no calcanhar causada por um idiota sem noção, com um carrinho de bagagem atrás de você, até a sua reclusão por falta de qualquer documento ou simplesmente “averiguação de rotina”. E esses casos pouco dependem da condição econômica ou social do País. Seja na Austrália ou em Botswana, se você tiver problemas... Rapaz, você terá problemas! Mencionei Austrália e Botswana pois foram os dois locais que tive alguns desses infortúnios.

Após 20 dias de trekking no Nepal e 2 conexões perdidas, cheguei ao Aeroporto Internacional de Sydney a 3 dias sem banho, roupas em estado deplorável e uma cara de exilado de guerra! Não tive muitos problemas no principio... A fila, linha amarela, esteira de bagagem. Mas quando estava de saída do terminal, dois sujeitos imaculadamente uniformizados me abordaram para a tal da “Averiguação de rotina”. OK, nada tenho a perder, pensei, mas foram 3 longas horas, de cueca, em que respondi pelo menos 30 vezes que não trazia Haxixe! A única consolação era a cara dos “guardinhas” a cada vez que reviravam minhas meias. Minha preocupação nem era tanto ser preso, pois sabia que nada tinha de incriminador, mas sei lá! Vai que resolvem realizar “exames de cavidades”! Tava fudido (literalmente).

Em Botswana foi diferente: Dia 1º de janeiro estávamos, eu e a Keila, entrando no país por terra, vindo da Namíbia por uma das fronteiras mais ermas do mundo, no meio do deserto do Kalahari, a 300 Km de Ghanzi, a cidade mais próxima! Descemos do Ônibus, com os devidos passaportes e, após a fila e a mal-fadada linha amarela, tivemos uma surpresa: Cidadãos brasileiros necessitam de visto para a entrada em Botswana! Não é o fim do mundo, embora em todos os guias era mencionado o contrário. Certo, “-Podemos adquirir um visto aqui?” Perguntei. “Claro”, foi a reposta. Tudo certo, apenas mais um dinheiro não planejado indo embora da carteira. “São 1000 pulas!” fiz as contas: 200 dólares americanos!!!! 200 DÓLARES! UM ROUBO, mas dada nossa situação não tínhamos muitas escolhas, a não ser sermos abandonados no meio do Kalahari! “Ok, aqui estão 200 dólares”. “Desculpe senhor, mas só aceitamos pulas!”. Agora a situação estava saindo de controle! “Como diabos eu ia ter pulas comigo no meio de deserto?” A doce funcionaria da fronteira não piscou “Esse não é meu problema!” rebateu. Os demais passageiros do ônibus estavam prontos para partir e nos deixar. “- Alguém quer comprar dólares? O menor cambio do mercado!” tentei, mas aparentemente ninguém estava interessado em desfazer-se de suas preciosas pulas! O ônibus estava ligado.

Nessas horas, em que as coisas parecem perdidas é o momento de abrir o nosso mais simpático sorriso e despejar todo aquele repertório de conversa fiada e malandragem que só nós, brasileiros, somos capazes de conceber. Pois bem, após 10 minutos de um blá blá blá que foi de Ronaldinho gaúcho ao nosso governo de esquerda anti-imperialista passando pelas influencias africanas em nossa cultura (com os devidos agradecimentos), conseguimos o que parecia impossível, entramos em Botswana sem um visto! Sem mesmo um carimbo no passaporte! (conseguimos um visto, na verdade, quase uma semana depois, SAINDO do pais... tiramos até fotos do momento).

Volto, novamente ao Ana Karenina e ao outro motivo por tê-lo citado. Quando contamos histórias interessantes sobre viagens, seja ela para Paranapiacaba ou Botswana, quase nunca mencionamos aquele belíssimo por do sol, ou aquela refeição maravilhosa. Nem mesmo perdemos mais de alguns minutos falando do clima excelente ou da sorte que tivemos quando nossa bagagem foi a primeira a aparecer na esteira. Falamos com muito mais ímpeto do quarto sujo, do ônibus lotado, das horas de caminhada, do frio, do calor, das fronteiras! Das roubadas que fazem cada viagem única e inesquecível! “cada infortúnio tem o seu caráter particular”. Quando se viaja, até o infortúnio torna-se uma benção!

“As águas é que são felizes, não precisam de visto para entrar no país. Por que fui nascer na Romênia, se o meu grande amor ainda mora em Paris” Karnak

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