Monday, April 12, 2010

Terra Cognita

Foi durante uma de minhas melhores férias, tinha uns 18 anos. Conheci aquele lugar aos poucos. Primeiramente me pareceu de uma vastidão inatingível, mas aos poucos, a cada tempo livre que tinha, me mandava para lá e cada vez mais desvendava com suas paisagens, suas montanhas, seu ar frio e perfumado, suas flores e florestas. Após alguns anos, tornei-me um habitue. Comecei a interagir mais com seus habitantes e até me tornar intimo de alguns deles. Fiz amizades para toda a vida e, é bem verdade, conheci certos camaradas que não pretendo encontrar tão cedo, mas mesmo deles sinto uma certa saudade. Aprendi atalhos, desbravei caminhos e me perdi (e como!), mas invariavelmente me achei (e como!). Lembrar de lá também me traz com carinho a memória de minha tia Antonieta que me levou pela primeira vez. O tempo foi passando, conheci outros lugares, mais desafiadores para um adolescente ávido por aventuras, fui perdendo um pouco o contato com o pessoal de lá, indo cada vez menos e depois de um tempo perdi o interesse, mas confesso: cada pedaço daquela terra continuou irremediavelmente em meu coração, não só por sua estonteante beleza, mas por considerar um território um pouco meu.

Outro dia, fiquei sabendo de que um grupo multinacional tomou posse de toda aquela terra e foi construído por ali, um complexo turístico gigantesco. No prospecto diziam que iriam manter todas as características originais de sua peculiar natureza e não iriam prejudicar a população local, o que achei deveras impossível.
Mas tomei coragem e fui! Após pelo menos oito anos ausente.

Estava tudo em uma aparente (e artificial) ordem, reconheci a maioria de meus amigos e fiquei muito feliz em saber que todos ainda estão bem, mesmo os mais velhos, que ainda esbanjam vitalidade. As paisagens continuam magníficas, mesmo que certas coisas tivessem de ser alteradas para que o tal empreendimento pudesse tornar-se factível. E se, por um lado, fiquei extremamente feliz em ver que, mesmo nas mãos de empresários, ainda pude entrar (mediante uma taxa, é claro) e aproveitar um pouco da paz que tanto desfrutei na juventude, por outro, o fato de tal destino ter se tornado tão popular me tirou seu encantamento.

O lugar agora é popular; existem lojas, merchandising e excursões. Não sei, talvez eu, um pouco mais velho, é que tenha mudado, ficado mais cri cri, mas, sinceramente, ainda sinto saudades de tudo como era, exatamente como era!

Mas sabe de uma coisa? A literatura é magnífica e ao reler “O Senhor dos Anéis” pude realizar esse sonho: voltar a Terra Média de minha imaginação, intocada, com todas as esperanças, medos. Pude encontrar novamente meus amigos exatamente do jeito que eram . Pude esquecer Hollywood, e seus bilhões e simplesmente me juntar a Merry, Pippin, Frodo e Bilbo calma e sossegadamente, durante dias e não horas e apreciar a minha Terra Média!

É uma pena que não isso possa acontecer com Itaúnas, no norte do Espírito Santo, onde li pela primeira vez “O Hobbit” e em que, apesar de ainda possuir a beleza das dunas, a calma do bar “Beira Rio” e o romantismo dos burricos levando gelo para a praia para abastecer as barracas, hoje não encanta mais ninguém! Já que era para ser assim que deixassem Peter Jackson fazer o serviço!

Desertos

Antoine de Saint-Exupery , um dia disse que o que torna o deserto um lugar lindo e que, em algum lugar ele sempre esconde um poço. E uma verdade, mas se os oásis são os locais mais aprazíveis de um deserto, a aridez e a desolação de seu coração é o melhor local para experiências, diríamos... "interiores". Não à toa, a história e a estória, carregam vários exemplos de revelações espirituais e filosóficas ambientadas em desertos. Na mitologia Judaico-Cristã, por exemplo, Deus, parece ter uma predileção toda especial por se manifestar aos profetas escolhidos em desertos, talvez, não apenas pelo contexto geográfico das narrativas bíblicas, mas, também, pela metáfora que tais locais carregam: entre o vasto e misterioso e o sagrado e o profético.

Foi no deserto de Nazaré que Jesus enfrentou o diabo, cara a cara; no deserto de Sur que as amargas águas de Mara se transformaram em uma fonte potável cheia de vida. Foi no deserto de Sim que pela primeira vez o Maná e as Cordonizes caíram do céu como provisão e sinal do cuidado de Deus para com seu povo e no Sinai que Moises conduziu o povo de Israel.

Os desertos, também aparecem como personagens principais em diversas obras de todos os grandes escritores, exploradores e poetas, em toda a história da humanidade, sempre carregando um fator imaginário. Homero, Marco Pólo, Shakespeare, Camus, Dante e muitos outros olharam para o Sinai, Sahara, Gobi, Kalahari como locais únicos e, quase sempre, solitários. Parece mesmo que a metáfora do espelho da alma sempre retorna; o lugar em que encontramos nos mesmos e tudo o que isso representa, o último divã.

Mas, pensando bem, dos desertos que conheço, creio que não conseguiria, com uma exceção, encontrar um aspecto comum entre todos eles. Mesmo o conceito de deserto, pode ser extremamente controverso: O que é um deserto? Estamos falando de seres vivos? Clima? Água? Paisagens? Metáforas? O Atacama, com suas paisagens pedregosas e montanhosas, de um tom vermelho e amarelo. O Sahara com suas gigantescas dunas. A Patagônia, ampla e branca e poeirenta. A quente e desolada Arábia. O rubro e místico Outback australiano. O que é, afinal, um deserto?

- “A água”, alguém argumentará. Ou a falta dela, para ser mais exato.
Na verdade, grande parte dos desertos do mundo tem abundancia de água, porém, em concentrações irregulares e acumulada em rochas abaixo da superfície. As vezes, esta água, por condições geológicas ou geomorfológicas vem a superfície, formando os oásis isolados. O problema não á a falta de água, mas a falta de chuva. A chuva é democrática; distribui água por uma grande área. Mas mesmo este conceito é questionável.

Quem atravessar a o sudoeste africano passará por uma das maiores estradas do continente: a “Trans Kalahari Highway” que liga Windhoek, capital da Namíbia a Pretória, na África do Sul. Como o nome diz, ela corta, de norte a sul o Grande deserto do Kalahari, um pedaço de terra do tamanho da França que abriga uma biodiversidade estonteante. Mesmo sendo extremamente árido, durante os meses de dezembro e janeiro, o Kalahari oferece uma das visões mais verdes da áfrica. Passei 10 dias por lá... 5 dias de chuva!

Mas existe, sim, em minha opinião, um aspecto comum e recorrente a todos os desertos, algo que poderia, embora com dificuldades e resistência da comunidade geográfica mundial, conceituá-lo: O céu.

Todos os desertos tem céus mágicos, mesmo que completamente azuis. As variações de tons, a medida que o dia passa, as nuvens escassas e violetas e por fim, o magnífica visão das estrelas durante a noite são elementos únicos dos desertos... de todos eles. Em um de meus livros –e filmes- prediletos, "O céu que nos protege – The sheltering skies", Paul Bowles nos intriga com diversas relações amorosas e sexuais entre personagens, no mínimo peculiares, e o dilacerante Sahaara, que no final das contas, é quem arrebata os corações. Mas, embora a magnificência do deserto seja clara, ele ainda é subjulgado por seu céu, como o título sugere. Bowles sintetiza: “O céu aqui é tão estranho que é quase sólido, como se nos protegesse do resto. E o que é o resto? Não é nada, só a escuridão da noite. A noite absoluta."

Lembro que, em uma noite fria, caminhava a esmo em San Pedro de Atacama, após um vinho e sentei em uma pracinha para descansar um pouco, quando todas as luzes da cidade se apagaram; um blecaute. Apos alguns segundos de escuridão, enquanto meus olhos acostumavam-se olhei para cima e vi centenas, milhares, milhões, zilhões de estrelas! Eram tantas, e tão brilhantes, que pareciam emitir um som, um zumbido grave, como uma lâmpada de neon! Perdi o fôlego por alguns segundos, não o recuperei completamente até hoje.

A visão de um céu no deserto, talvez seja, também, a essência dos aspectos pessoais e místicos que os desertos carreguem, talvez não seja a proximidade da morte, ou o silencio ou a sua vastidão mas sim a grandiosa beleza do azul turquesa que nos fazem pensar, e sentir nossa insignificância, seja isso divino ou poético.

Sobre uma vila e seus livros

Quando me perguntam como é a Noruega eu digo que parece uma mistura de “Caras” com “O senhor dos anéis”. Gente linda, rica, paisagens de tirar o fôlego aliado à riquíssima mitologia viking. Quando se viaja por lá, tudo parece perfeito: Os trens não atrasam, as ruas são imaculadamente limpas, as pessoas simpáticas e solicitas e sim, meu amigo, os fiordes realmente são magníficos! Mas se paga caro por tudo isso, e como! Como os locais costumam dizer: Na Noruega, quando está escrito “Grátis:”quer dizer 30 euros! Em todos os lugares, existem quiosques de informações turísticas, indicações, mapas, panfletos. Quando se viaja, parece que sempre se está numa excursão. É difícil ser um viajante, você, lá, é sempre turista!

Mas mesmo na Noruega é possível encontrar lugares inexplorados, em que alguém ainda se espanta ao ver que você é um forasteiro. Lugares espetaculares como Fjærland onde se ouve apenas o vento do ártico assobiando e cuja a alma são os livros.

Fjærland e uma pequena vila ao noroeste de Bergen, na costa do mar do norte. O local e banhado por um dos mais belos Fiordes do litoral sul norueguês e impressionantemente perto do circuito turístico de Flam e da geleira de Jostedalsbreen (a maior da Europa). Nesta pequena vila, cuja paisagem de fundo beira o insano de tão linda, está a maior concentração de livrarias e sebos do mundo. Isso mesmo, são 24 livrarias para 300 habitantes. Mas esses pequenos locais estão longe de serem simples estabelecimentos de compra e venda de livros. São, isso sim, como templos, algo que beira uma ritualidade religiosa. Os habitantes simplesmente abrem suas casas para o leitor interessado que vasculha as estantes e prateleiras, via de regra, estritamente organizadas, em busca de uma raridade ou mesmo uma boa primeira edição de um Ibsen, no original, é claro.

Raramente se vê um vendedor ou alguém o observando ou mesmo o ajudando a escolher algum volume, você simplesmente passeia, se delicia e se cerca de páginas, capas, línguas e idéias por todos os lados. Em alguns casos, chega-se ao ponto de se ver prateleiras abarrotadas de livros junto a (única) rua da vila com uma pequena placa ao lado “Pegue um e deposite 10 coroas na caixa”. O local exala sapiência e parece um pano de fundo ideal para uma historia de Borges. Algo como “a cidade que tudo sabia” ou algo do gênero.

Impressionantemente, tal lugar não figura como mais de uma linha na maioria dos tais guias e panfletos que se encontram por todo o pais, mas, sem duvida, Fjærland é um lugar mágico, que merece uma peregrinação e uma posição de destaque nos lugares sagrados da Europa, junto a Lurdes e Santiago de Compostela, porém aqui, ao invés de Santos ou Deuses, louvam-se Letras.

Seu Genor e o Ribeirinha (uma ficção pra variar)

Procurava a Cachoeira do Ribeirinha, perto de Brejo alto, uns 15 quilômetros antes de Sao Joati do Piratininga na direção de Torrão. Havia dirigido a tarde toda atrás da maldita cachoeira. No caminho passei por umas dez cachoeiras. Mas a Cachoeira do Ribeirinha era especial, pelo menos era o que me diziam: A cachoeira do ribeirinha, perto de Brejo alto, uns 15 quilômetros antes de Sao Joati do Piratininga na direção de Torrão. E era para lá onde eu estava indo. Cachoeira do Ribeirinha.
O sol já não estava tão quente, já duvidava de minha coragem em cair na água gelada, estava com fome, resolvi dar uma ultima chance a minha idéia obsessiva de encontrar a cachoeira do Ribeirinha. Encostei o carro junto a uma casinha de pau-a-pique ao lado da estrada de terra vermelha, a casa era exatamente do mesmo vermelho da estrada, não o mesmo tom de vermelho, o mesmo vermelho mesmo.
Um garotinho dobrava um papel manteiga, atrapalhado com duas varetas cruzadas entre seus dentes. Ao lado, uma pequena tesoura, um tubinho surrado de cola e um livro aberto. O moleque lutava com as dobras não muito precisas no papel vermelho enquanto cortava outro pedaço de saco plástico para a rabiola. Não se saia muito bem, para falar a verdade. Fiquei lá observando por um instante tal cena. Queria intervir de algum modo, ajuda-lo mas ele se atrapalhava cada vez mais. Deu outra breve olhada numa das paginas no livro ao seu lado como se seguisse um manual pratico de manufatura de pipas, olhou de novo desolado para a sua obra inacabada, já sem muitas esperanças em concluí-la satisfatoriamente, deu um sorrisinho envergonhado olhando de soslaio para mim. Retribui o sorriso. Cheguei mais perto, examinei a pipa, não sou um especialista, mas realmente não parecia muito promissora. Ele voltou-se novamente para o livro, desta vez mais concentrado, tentando entender em que parte havia perdido o fio da meada. Voltou duas ou três paginas e pareceu ter compreendido, foliou três para frente novamente desta vez com os seguindo na diagonal das paginas, murmurando as instruções baixinho e apos alguns segundos, fechou o livro de sopetão como se este se recusasse a revelar qualquer informação útil. Enfim me dirigiu o olhar percebendo que eu era um forasteiro dirigindo um carro bacana. Pergunte-lhe da Cachoeira e ele apontou para a estrada
- A cachoeira esta dentro da fazenda do seu Genor, ele não deixa entrar não.
-Tem certeza?
-Tenho sim senhor, eu mais Uelito íamos lá atrás de cambuci mas seu Genor cercou o rio e disse pra nois não ir mais lá.
Fiquei realmente desapontado, e o garoto percebeu.
- Se o senhor quiser posso te levar na Cachoeira do Espinho, mas e mais longe.
- Não precisa, afinal você precisa terminar sua pipa!
O garoto olhou para aquela massaroca de papel amassado e deu uma risadinha.
- Não senhor, o difícil mesmo é o livro que seu Genor deu pra mim. Tem coisas que é ruim de entender.
Estiquei o olho curioso e ele meio envergonhado me mostrou: "Calculo Diferencial e Integral - Vol. 2". Fiquei completamente estupefado! Que diabos de sujeito masoquista, sem coração que fecha a cachoeira mais bonita da região e da um livro desses para um garoto! Peguei o livro da mão do menino imaginando que talvez o velho gibi estivesse encadernado no livro do Paulo Boulos, mas não! Estava tudo lá!
- Esse livro não e pra você não garoto, concatenando minhas chances de receber um tiro nos cornos se fosse tirar satisfações com tal seu Genor.
- E, respondeu o garoto, esse e o volume dois e não tem jeito de eu entender como derivar as funções do numerador e do denominador para calcular um novo limite para duas função.
Não entendi absolutamente nada, não sabia o que dizer:
- Mas e a pipa? Foi a única coisa que veio a minha mente
- Ah, ele riu, é bão pra manter as mão ocupada enquanto eu penso, Seu Genor que falou!

Fronteiras

Costuma-se dizer que não devemos julgar um livro pela sua capa. Toda a verdade, entretanto, acho perfeitamente viável julgá-lo por sua primeira frase. Claro que cometeria injustiças, mas as primeiras palavras de um grande livro simplesmente têm de ser grandes (isto, em minha opinião, não vale para o final, ao contrário do que muitos colocam. Grandes livros podem ter finais apenas razoáveis). Alguns exemplos, simplesmente arrebatadores, são aqueles que quase encerram a obra, como se as 400 ou 500 páginas seguintes fossem apenas uma alegoria, um desenvolvimento praticamente ilustrativo do que foi a muito fechado. Lá atrás. Veja o caso de “O mito de Sísifo” de Camus “Só existe um problema verdadeiramente filosófico: o Suicídio”: É quase impossível abandonar um livro após um princípio como este, mesmo que quase tudo já tenha sido dito. Ou então “A metamorfose” de Kafka “Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto”. Mas de todos meus inícios de livro, posso dizer que meu predileto é de Tolstoi em “Ana Karenina”: “Todos os gêneros de felicidade se assemelham, mas cada infortúnio tem o seu caráter particular”. Há muito pouco a se dizer depois disso! Mas Tolstoi diz: mais 700 páginas maravilhosas sobre humanismo, existencialismo, filosofia e, claro, infortúnios!

Comecei a falar sobre isso por dois motivos: Primeiro porque, embora a surrada metáfora entre livros e viagens seja, quase sempre, correta, neste caso pode ser considerada oposta. O Pior momento da viagem é o início! Principalmente quando se trata de viagens internacionais. Você planeja tudo com afinco, guarda dinheiro, faz sua mala em estado de excitação, senta em uma poltrona de avião durante 10 ou 12 horas, chega a seu destino e qual seu comitê de recepção?! A Alfândega! Aduana! Customs! Aqueles funcionários cujo formulário de ingresso na carreira constava uma cláusula de antipatia! O pináculo da burocracia!

Se você tiver sorte, muita sorte, esperará alguns minutos em uma fila, sempre atrás da linha amarela, na sua vez, apresentará o passaporte a um sujeito que olhará para você e para sua foto, com uma cara de que gostaria muito de botá-lo em cana, seja lá por que motivo. Vai, em seguida, despejar toda sua frustração no ato de carimbar seu passaporte TUM! Claro que não irá responder seu educado “Thank you”. Então você irá para a esteira de bagagens e como ainda esta com uma sorte dos diabos, esperará apenas 30 minutos (de apreensão), até ver sua mochila toda torta e empoeirada aparecer lá em baixo, então você olha para os outros infelizes que ainda estão esperando, com um certo ar sádico, recolhe a bagagem a apalpando para tentar sentir se aquele vidro de perfume não estourou contaminando todas suas roupas. Passa pelo controle de bagagens, pela fila do “Nada a declarar” e pronto! Finalmente você pode começar a curtir sua viagem, tudo tende a melhorar a partir de agora. As próximas páginas são promissoras!

Mas se você não tiver com tanta sorte assim?! A quantidade de merda que pode acontecer em uma fronteira é quase infinita, podendo ir desde uma pequena contusão no calcanhar causada por um idiota sem noção, com um carrinho de bagagem atrás de você, até a sua reclusão por falta de qualquer documento ou simplesmente “averiguação de rotina”. E esses casos pouco dependem da condição econômica ou social do País. Seja na Austrália ou em Botswana, se você tiver problemas... Rapaz, você terá problemas! Mencionei Austrália e Botswana pois foram os dois locais que tive alguns desses infortúnios.

Após 20 dias de trekking no Nepal e 2 conexões perdidas, cheguei ao Aeroporto Internacional de Sydney a 3 dias sem banho, roupas em estado deplorável e uma cara de exilado de guerra! Não tive muitos problemas no principio... A fila, linha amarela, esteira de bagagem. Mas quando estava de saída do terminal, dois sujeitos imaculadamente uniformizados me abordaram para a tal da “Averiguação de rotina”. OK, nada tenho a perder, pensei, mas foram 3 longas horas, de cueca, em que respondi pelo menos 30 vezes que não trazia Haxixe! A única consolação era a cara dos “guardinhas” a cada vez que reviravam minhas meias. Minha preocupação nem era tanto ser preso, pois sabia que nada tinha de incriminador, mas sei lá! Vai que resolvem realizar “exames de cavidades”! Tava fudido (literalmente).

Em Botswana foi diferente: Dia 1º de janeiro estávamos, eu e a Keila, entrando no país por terra, vindo da Namíbia por uma das fronteiras mais ermas do mundo, no meio do deserto do Kalahari, a 300 Km de Ghanzi, a cidade mais próxima! Descemos do Ônibus, com os devidos passaportes e, após a fila e a mal-fadada linha amarela, tivemos uma surpresa: Cidadãos brasileiros necessitam de visto para a entrada em Botswana! Não é o fim do mundo, embora em todos os guias era mencionado o contrário. Certo, “-Podemos adquirir um visto aqui?” Perguntei. “Claro”, foi a reposta. Tudo certo, apenas mais um dinheiro não planejado indo embora da carteira. “São 1000 pulas!” fiz as contas: 200 dólares americanos!!!! 200 DÓLARES! UM ROUBO, mas dada nossa situação não tínhamos muitas escolhas, a não ser sermos abandonados no meio do Kalahari! “Ok, aqui estão 200 dólares”. “Desculpe senhor, mas só aceitamos pulas!”. Agora a situação estava saindo de controle! “Como diabos eu ia ter pulas comigo no meio de deserto?” A doce funcionaria da fronteira não piscou “Esse não é meu problema!” rebateu. Os demais passageiros do ônibus estavam prontos para partir e nos deixar. “- Alguém quer comprar dólares? O menor cambio do mercado!” tentei, mas aparentemente ninguém estava interessado em desfazer-se de suas preciosas pulas! O ônibus estava ligado.

Nessas horas, em que as coisas parecem perdidas é o momento de abrir o nosso mais simpático sorriso e despejar todo aquele repertório de conversa fiada e malandragem que só nós, brasileiros, somos capazes de conceber. Pois bem, após 10 minutos de um blá blá blá que foi de Ronaldinho gaúcho ao nosso governo de esquerda anti-imperialista passando pelas influencias africanas em nossa cultura (com os devidos agradecimentos), conseguimos o que parecia impossível, entramos em Botswana sem um visto! Sem mesmo um carimbo no passaporte! (conseguimos um visto, na verdade, quase uma semana depois, SAINDO do pais... tiramos até fotos do momento).

Volto, novamente ao Ana Karenina e ao outro motivo por tê-lo citado. Quando contamos histórias interessantes sobre viagens, seja ela para Paranapiacaba ou Botswana, quase nunca mencionamos aquele belíssimo por do sol, ou aquela refeição maravilhosa. Nem mesmo perdemos mais de alguns minutos falando do clima excelente ou da sorte que tivemos quando nossa bagagem foi a primeira a aparecer na esteira. Falamos com muito mais ímpeto do quarto sujo, do ônibus lotado, das horas de caminhada, do frio, do calor, das fronteiras! Das roubadas que fazem cada viagem única e inesquecível! “cada infortúnio tem o seu caráter particular”. Quando se viaja, até o infortúnio torna-se uma benção!

“As águas é que são felizes, não precisam de visto para entrar no país. Por que fui nascer na Romênia, se o meu grande amor ainda mora em Paris” Karnak

Yes War

Eu não sei até que ponto a reflexão sobre aquela velha pergunta: “O que você vai ser quando crescer?” pode realmente influenciar as decisões sobre o futuro das crianças. Existem, é certo, casos de prodígios ou de vocações absolutamente derradeiras, porém, tenho a convicção para aqueles que não nasceram como Mozart ou Richard Feynman, passaram por inúmeras profissões dos sonhos antes de tornarem-se profissionais na realidade. Mas a pergunta continua pertinente: qual a porcentagem dos adultos cujos longínquos desejos infantis foram realizados? Não há apenas uma resposta, até por que a porcentagem seria diferente entre pilotos de helicóptero e contadores. Mas o fato é que em algum momento, alguma influência do mundo exterior parece ter sido decisiva em cada um de nós, em maior ou menor grau, em criança ou já adolescente: a leitura de um livro, um programa de televisão, o conselho de um parente ou amigo. Para mim também foi e eu nem sabia disso na época, aliás, eu nem sabia disso até outro dia quando eu e alguns amigos resolvemos nos encontrar para relembrarmos um dos grandes momentos da nossa adolescência!Percebi, então o quanto aquilo tinha influenciado profundamente minha vida futura. Nós fomos jogar “WAR”!

O tabuleiro de “WAR”, para um geógrafo como eu pode ser considerado como uma grande heresia! Não há o menor cuidado com a escala cartográfica, com a geometria dos continentes, com as distâncias. Os limites geopolíticos então! Portugal faz fronteira com a Iugoslávia, Nova Iorque com México! Não há o menor padrão ou regra de delimitação dos “territórios”. Mas a diversão era (e é) garantida. Mas mais do que a simples busca do cumprimento de um certo objetivo, o que sempre me intrigava eram aqueles malditos territórios na Ásia, que além de misteriosos para um garoto pouco familiarizado com geopolítica global eram muito difíceis de serem controlados, dada à suas quantidades de fronteiras.

Creio que poucos de vocês, leitores, e também um dia jogadores de “WAR” (quem, afinal não foi?), sabem o que diabos é, e onde fica realmente o Omsk? O fato é que, de uma maneira ou de outra, estes lugares ficaram marcados em muitos de nós, mesmo que seja apenas pela lembrança de um nome exótico. Para alguns, entretanto, significaram um pouco mais. Sim, eu sempre quis conhecer Vladivostok! Não fazia a menor idéia de como, ou o que exatamente era esse pedaço de mapa, mas me parecia o lugar mais longe possível para visitar na terra! “Se você conhece Vladivostok, ah então deve conhecer o mundo todo!”. Este meu desejo de infância eu ainda não consegui realizar, mas posso afirmar que ele continua; firme e presente. Está entre os meus lugares favoritos em que nunca estive.

Vladivostok fica no extremo leste da Federação Russa, no Estado de Primorye (ou Estado Marítimo), banhado pelo Mar do Japão, é um lugar frio, muito frio, com temperaturas que despencam freqüentemente à –40°C, e raramente ultrapassam 20oC no auge do verão. A cidade, que possui a maior população da porção oriental da Rússia, é marcada pela desorganizada mistura da arquitetura eslava do Séc. XIX trabalhada em madeira com prédios de ângulos retos e monumentos típicos da época comunista. É também, um centro de excelência russa de desenvolvimento militar e tecnológico. A pesca e atividade portuária também são atividades econômicas importantes. Não parece, a primeira vista um destino turístico tão interessante quanto Paris ou Veneza. Há, entretanto, a alguns quilômetros ao norte, um dos santuários naturais mais ricos e belos do planeta: o parque de Sikhote-Alin. Seguindo uma cadeia de montanhas do mesmo nome, o parque é mais conhecido por ser um dos últimos habitats da terra dos tigres siberianos (Panthera tigris altaica) e também por ter sido palco de um dos eventos naturais mais dramáticos do século XX: uma série de impactos de meteoritos!



Em uma ensolarada manha do dia 12 de fevereiro de 1947, mais especificamente as 10:37h, uma chuva de bolas de fogo caiu do céu, cada uma delas tão brilhante quanto o sol. Estima-se que um grande corpo de 1000 toneladas viajando à 14 km por segundo tenha se partido, na entrada da atmosfera, em centenas de pequenos corpos que atingiram a região de Sikhote-Alin naquele dia formando uma série de 120 crateras, algumas com mais de 150 metros de diâmetro. Com o impacto, os meteoritos se estilhaçaram e cobriram boa parte da região. É possível achar, sem muito esforço, amostras de 500 gramas no solo das florestas. Na época, durante a guerra fria, houve pânico e o governo manteve o quanto pode a história em segredo, afinal parecia muito mais razoável que bolas de fogo caindo do céu em um ponto militar soviético estratégico, era um ataque americano do que rochas extraterrestres, ou então, por que não, uma invasão de exércitos amarelos.


Hoje em dia, a venda de fragmentos de meteoritos a turistas é uma fonte de renda bastante explorada localmente, e sem a ameaça tão clara dos vizinhos americanos (o Alasca fica logo ali), a região tem recebido um numero cada vez maior de turistas e estudiosos interessados em suas exuberantes florestas de Taiga e nos imponentes tigres. Quanto a mim, espero a oportunidade dedesembarcar na linda estação de trem construída em 1894, ponto final da maior linha férrea do mundo, a trans-siberiana! Não antes de fazer paradas estratégicas (e pacíficas) em Dudinka, Omsk, Aral e Tchita.

O Passo


Foi em um dia chuvoso de janeiro, próximo à pequena vila de Dunche, no norte do Nepal, junto à fronteira com o Tibet. A formação montanhosa Langtang (parte do complexo do Himalaia), se estendia a oeste, seguindo o vale do pequeno rio homônimo que corria abaixo de nós (na verdade o rio não era assim tão pequeno como pudemos observar depois, mas lá de cima parecia mesmo um fiozinho de água). O frio já começava a incomodar, e ainda tínhamos umas duas horas de caminhada até o acampamento, junto ao passo de Laurebina, onde passaríamos a noite a fim de atravessar à outra face das Langtangs na manha seguinte.

Nosso guia, Nabba, um nepali baixinho com pele cor de chocolate, não parava de fumar haxixe e de cantar uma canção que parecia completar o cenário. O chuvisco se transformou em neve à medida que subíamos. Começamos a ver aqui e ali manchas de céu azul entre as nuvens, estávamos ficando mais altos que elas e para minha sorte, a altitude não fazia multo efeito em meu organismo até então, mesmo eu não tendo o que pode se chamar de "físico atlético".

Continuamos a subir por mais algum tempo (quem costuma fazer trilha, sabe a dificuldade em estimar o tempo, principalmente em um lugar exótico onde a mente vagueia pela paisagem, e você não sabe se acabou de andar quinze minutos ou uma hora) quando uma neblina bastante cerrada tomou conta de tudo novamente, não conseguíamos ver dez metros a frente de nossos olhos, o frio ficou mais intenso e cristais de gelo se formavam sobre minha mochila. Já estava ficando realmente cansado, quando o Nabba levantou seu pedaço de pau que usava como cajado, apontando para um vulto pouco acima de nós; era a pequena estalagem onde iríamos passar a noite. "Home for tonight", ele disse. Era uma construção bastante espartana, feita de lascas de pedras e madeira. Dentro, apenas um forno (que rapidamente foi ligado) e tapetes de palha. Acima de nós, apenas um pequeno platô nevado onde havia um pequeno templo budista, cercado de pedaços de lenços coloridos balançando ao vento (que segundo os budistas servem para levar as orações para todo a mundo). Depois de retornar à cabana e virar, inutilmente, minha mochila do avesso em busca de uma barra de chocolate perdida, já meio tonto devido ao cansaço e ao efeito dos mais de 5000 metros de altitude, dei um pequeno cochilo.

Acordei com o Nabba, me cutucando, com um sorriso no rosto me apontando para fora: "The sunset...veeeeery beautiful". Levantei-me ainda um pouco tonto e sai de "casa", então vi: Tudo estava cor de laranja, com a neve refletindo para todas as direções os últimos raios de sol daquele dia 22 de janeiro. As nuvens estavam exatamente ao nível do chão, tão densas que parecia possível caminhar sobre elas ate as montanhas mais próximas. Uma lua cheia incrivelmente grande e brilhante surgia um pouco à direita. O frio, que a essa altura já beirava os 10 graus negativos, não mais incomodava. Tudo parecia perfeito, como tirado de um sonho... o céu estava incrivelmente azul, e algumas estrelas já brilhavam a leste. Fiquei em pé parado durante alguns minutos observando tudo aquilo, com um sorriso meio bobo em baixo do meu capuz de lã.

Então lembrei do Rubem braga em sua mais linda cronica: A viajante.

"Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.
Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique. Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando."

Pobre Também Avúa


Quando se sai dos domínios do mundo civilizado, Ir de um lugar para outro, por mais próximos que sejam, pode se tornar um grande desafio. Eu me lembro de algumas histórias, como o pesadelo que se tomou a viagem de Chang Mae (no norte da Tailândia) até Bangkok - Vinte e oito horas no vagão da terceira classe, onde a densidade demográfica era a maior possível prevista pela física da matéria condensada.
Ou outra vez, em que viajei de Belém a Manaus em uma rede pendurada na proa de um barco abarrotado de pastores protestantes. Lembro que cheguei duas horas antes do embarque com um amigo e minha rede pronto para singrar as águas do Amazonas. O barco já estava tão cheio que as redes eram dispostas em três andares: O térreo (com o traseiro encostado no chão), intermediário e superior (cara no teto)! Obviamente não havia mais lugares, quando meu amigo achou, lá na frente, um lugarzinho ótimo, com uma vista fantástica para os dois lados (bombordo e boreste, para aqueles que apreciam o jargão náutico). Embora achando um pouco estranho não haver ninguém ainda, armamos nossas redes acompanhados por sorrisinhos irônicos dos caboclos "vizinhos". Já pronto para zarpar, lendo um livro e confortavelmente instalado, notei uma coisa estranha: apenas nossas redes estavam dispostas transversalmente ao eixo do barco! Pois é, foi só começarmos a navegar que e descobrimos. Balançávamos tanto, que chegávamos a transpor uns dois palmos a lateral do barco (olhávamos para baixo e víamos o rio). Como se isso não bastasse, a cada batida que o barco dava na água, após passar por qualquer ondinha, tomávamos um banho, e o pior; havia uma caixa de som imediatamente acima de minha cabeça, e todos os dias ás 6 da manha, o Capitão colocava, no último volume a única fita a bordo: Roberto Carlos... Sete longos dias.
Por isso que eu digo: viajar de avião é um verdadeiro luxo para nós, os "duristas", tão acostumados a passar por essas verdadeiras provações. Rápido, seguro, refeições a bordo! Também sei de algumas histórias nada agradáveis envolvendo aviões, principalmente quando se trata de empresas regionais ou aquelas, cuja simples referencia ao nome já causa um frio na espinha, como a Royal Nepal Arlines, Kazakistan Air ou a campeã; a PIA (Pakistan International Airways. ou: Por favor, Informem Alá - por falar nisso, minha avó conta que nos anos sessenta havia uma companhia aérea na Amazônia chamada PTA, abreviatura de "Pará Transportes Aéreos"...carinhosamente tratada como "Pobre Também Avúa"). Mas mesmo nestas empresas de menor prestigio, o ato de voar pode se tornar uma grande experiência.
Uma vez, viajava pelo Chile com mais quatro amigos, e teríamos de pegar um vôo de Puerto Montt para Punta Arenas, no extremo sul do continente. Fomos alertados a evitar a Ladeco pois tal empresa, segundo alguns amigos, não primava pela segurança e estava em vias de falência. Após procurarmos sem sucesso, vôos com companhias maiores, descobrimos uma ótima tarifa pela tal Ladeco, nos entreolharmos por um momento e decidimos ir; se tem de ser, será.Embarcamos no Boeing 737 novo em folha e depois da bem sucedida decolagem, nos surpreendemos pela ótima qualidade do serviço de bordo e descontração da tripulação.

Após uma hora de vôo descobri, para minha surpresa, que toda a safra de Concha y Toro 1994 estava sob minha poltrona (sentamos na ultima fileira do avião). Nos esbaldamos de tomar vinho, e já meio alto (desculpem o trocadilho), passei a resto do vôo conversando animadamente com uma bela aeromoça, a Lorena, que até me convidou para passar uns dias em sua casa em Viña del Mar. Definitivamente foi um vôo e tanto. Hoje, infelizmente a Ladeco não existe mais, faliu. Provavelmente por excesso de "reagalos" a seus passageiros e nunca mais vi a Lorena. Uma pena.