Sunday, April 12, 2015

Neve

O que será que o autor Dinamarquês Peter Hoeg, o Premio Nobel Orhan Pamuk e este blogueiro que vos escreve tem em comum? Seria muito fácil pensar em uma resposta clara se nos referirmos apenas aos dois primeiros: Um talento inegável! Mas me coloco entre estes grandes escritores com uma razão (aparentemente) muito mais simplória e frívola:

Nós amamos o frio e suas paisagens brancas.

Será que é possível compreender completamente a beleza de um campo coberto de neve e uma temperatura de dois dígitos abaixo de zero quando somos oriundos de uma pais tropical e fundamentalmente verde? Assistimos uma paisagem assim, uma vez, em uma viagem, depois retornamos ao nosso ninho quente e ensolarado, contando a todos a beleza da neve e do inverno. Não sei! Creio que o senso da neve não se faz com uma olhadela ou uma briga de neve, muito menos a uma descida de snowboard junto a um chique resort de esqui. Não! O privilegio da fascinação verdadeira pelo gelo só pode atingir alguns, como os esquimós e os leitores de Pamuk e Hoeg.

Deixando a cidade de Urgrup, na região da Capadoccia no centro leste turco, durante um inverno particularmente frio, observando as poucas pessoas andando apressadamente pelas ruas escorregadias, arcadas e se protegendo do vento, tive uma sensação incrivelmente real que me fez sentir exatamente como o personagem Ka, do brilhante livro “Neve” de Pamuk: "sentei-me e, por entre a neve, olhei as luzes alaranjadas das casas mais afastadas dos bairros periféricos, as salas miseráveis cheias de gente assistindo à televisão, e os últimos telhados cobertos de neve, até que, finalmente as graciosas e trementes fitas de fumaça que se erguiam das chaminés arruinadas já não passavam de borrões aos meus olhos rasos de água”.

Na mesma viagem, retornando a Istambul, ainda mais linda depois de ser castigada por dias seguidos de nevascas, ao perambular pelas escuras ruas do Sultanahmet, vi a neve refletindo a luz da lua iluminando as casas de madeira escura com estilo otomano clássico e, novamente, compreendi o que outro autor gelado, Peter Hoeg, quis dizer em seu brilhante “Smina sense of snow”: “Talvez seja errado que lembremos os grandes momentos de nossa vida como se fossem eventos discretos e extraordinários. Talvez a paixão, a certeza absoluta da morte e o amor a neve não sejam acontecimentos repentinos. Talvez eles sempre estiveram presentes e, de alguma maneira, nunca desaparecerão completamente”.



O frio é mesmo um personagem tão complexo e profundo que não basta conhecê-lo superficialmente. Somente em algumas viagens e apenas em alguns livros podemos realmente tentar compreende-lo, tocá-lo e efetivamente senti-lo.

"Futebol é coisa de homem"

Verdade!

Quero dizer: verdade apenas se ampliarmos o termo "homem" para a chauvinista e sexista referência a nossa espécie: "- Futebol é coisa de Homem". Mais correto seria então: "Futebol é coisa de Homo sapiens!". Assim, de maneira um pouco mais ousada, talvez poderíamos referir a nos mesmos como "Homo ludopedos".

Podemos entender nossa essência de através do estudo de nossa relação com a bola como uma mitologia própria: Joseph Campbell em seu estrondoso "O Poder do Mito" escreveu que "os mitos [...] sempre deram sustentação à vida humana, construíram civilizações e formaram religiões através dos séculos e têm a ver com os problemas interiores, com os profundos mistérios, limiares da nossa travessia pela vida". E não vejo, em toda a experiência humana, questão interior tão misteriosa ou profunda quanto um gol!

Devo estar exagerando, eu sei, afinal, até onde tenho notícia, nenhum grande pensador tenha se dado o trabalho de escrever mais do que um par de linhas sobre futebol. Seria, entretanto, extremamente gratificante ler Sartre abordando experiência "Em Si" de um drible (sua "necessidade" em relação a sua "essência"), Einstein calculando as variáveis não lineares de uma partida ou, ainda, Nietzsche proclamando em altos brados que "Pelé está morto!"

De qualquer maneira, sendo filosoficamente importante ou não, o futebol é um ótimo meio para entendermos um determinado povo, ainda mais quando se viaja com um passaporte verde (o meu ainda vale...) da Republica Federativa do Brasil.
Não foram poucas minhas experiências de portas abertas, sorrisos hospitaleiros ou animadas conversas iniciadas a partir de nossa reputação. Para quem já viajou para qualquer lugar além de fronteiras verde e amarelas, sabe do que falo: a famosa frase "Oh, Brazil!!! Ronaldo!!!!" dita alguns segundos após sua resposta ao famoso "Where are you from?". Mas, muito embora, essa reação seja aparentemente quase que universal, há alguns detalhes, certas nuances que identificam cada povo, cada cultura, basta prestar atenção.

O oriental, por exemplo, menciona o futebol brasileiro com uma admiração respeitosa, como se referindo a uma casta de mestres inatingíveis e de certo modo incompreensível. Converse sobre futebol com um japonês; ele mostrará um respeito por Zico que você não encontrará nem no mais fanático flamenguista. O europeu, por sua vez, especialmente os Britânicos, mostram uma admiração diferente, eles questionam! Querem saber por que temos esse "dom", relacionam nossa habilidade com a bola ao ritmo e ao Carnaval, tecem teses e teorias quase que científicas para, no final, chegar a mesma conclusão: "Brazil.... Football!".



Mas, sem duvida a reação mais tocante que já vi, foi na África. Acampado em um parque nacional na Namíbia; puxei conversa com dois homens que faziam a manutenção do jardim do camping onde estava. Quando disse que era brasileiro, conterrâneo de Ronaldinho, para minha surpresa, eles simplesmente começaram a rir! Gargalhar! Fazendo mímicas que imitavam algumas jogadas famosas do, então camisa 10 do Barcelona. " -Ronaldinho".... risos... "- The best".... gargalhadas....!



Durante alguns minutos acompanhei, desconcertado, tal cena. Após se acabarem de tanto rir, o sujeito mais alto correu para a parte de trás do galpão de manutenção e trouxe uma bola toda surrada e murcha. Entregou-a para mim em um gesto meio tímido, como se EU fosse o Ronaldinho! "Play"; pediu-me, quase em um tom de suplica.
Não primo pela técnica apurada, mas ainda carrego comigo alguns bons anos de pelada e só em tocar duas vezes a pelota sem deixá-la cair o chão arranquei mais alguns minutos de gargalhadas de meus interlocutores. Após desfilar mais meia dúzia de truques ridiculamente limitados, devolvi a bola e recebi um dos mais sinceros “Thank you” que já ouvi. O mais curioso disso é que no dia seguinte, caminhando pela pequena vila, vi os dois rapazes jogando bola em um campo improvisado e posso dizer, sem a menor sombra de duvidas, que eles jogavam MUITO mais do que eu!
Para não ser injusto, também fiquei muito surpreso, certa vez, quando encontrei um italiano em um ônibus no Marrocos, seguiu-se o dialogo padrão;

- Where are you from?
- Brazil!
Já esperando o velho assunto futebol, me veio uma resposta completamente imprevisível:
- Oh, Yeah.... Grande Sertáo Veredas... Ghuimaráes Rosa... Os Sertóes... Da Cunha, Machado de Assis.

O sujeito era dono de uma livraria em Peruggia. Um leitor compulsivo e um dos melhores amigos que já fiz em viagens, o Stefano, o único italiano que não suporta futebol (o Humberto Eco também não, mas isso já é uma outra história).

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